segunda-feira, 21 de abril de 2014

O Rapaz Louro


Eu procurava, sem sucesso, situar as sobrancelhas do rapaz que me passara a palavra. Era muito pálido, mas não tinha o aspecto doentio. As veias, pelo que se podia ver, continuariam encobertas. Sei apenas que levara muito tempo sobre o queixo afilado, a fronte um pouco desproporcionada. Os cachos, tão cinzentos quanto os lábios, davam-me a impressão de que envelheceria de repente, de um só golpe, caso eu me fixasse em outro ponto qualquer. No entanto, era muito jovem, devia ser muito jovem, e muito vermelho ao sol. 

Agora desbotava como um anjo de presépio, doentio na medida em que o são todos os anjos de presépio, retrato de primeira comunhão. 

Devo ter perdido a cor de repente, pois logo ouvi dizer... Está se sentindo bem? Quer que eu segure seu casaco? Está suando...

Não -- obrigado --, não soube como reagir à ternura inesperada com que as palavras foram pronunciadas. Limitei-me a esticar o braço direito e apoiar-me no poste ao lado, tentando dar ao gesto o máximo de naturalidade possível, as costas levemente arqueadas. Eu poderia agora traçar uma linha (vermelha, pulsante) do meu maxilar até os quadris. Uma linha vermelha, pulsante. Borrões amarelos e negros à entrada do bar. Atrás do rapaz, a cabeça do rapaz, a redução ao movimento prestes a se efetuar. Há pouco tinham aplaudido a tumultuada passagem de um caminhão de lixo. Falou-se de reformas significativas num imóvel recém-alugado, uma espécie de estúdio com um pequeno jirau. A voz, no entanto, traía alguma irritação. Ofendera alguém perguntando? Não havia motivo para tanto.  

Tentava fazer assunto. As coisas que eram ditas, que breve seriam ditas, passavam sem as minhas pernas – elas podiam, então, continuar fraquejando sob o peso agora tremendo da cabeça. Eram imóveis então, estacadas à força, perpendiculares à calçada. Eu poderia agora me esquecer. Não tinha senão de me deixar levar pelo fluxo da conversa, avançar um ou outro comentário a intervalos oportunos. Entretanto, as linhas queriam o comprido, começavam a repuxar com força cada vez maior. Isto já acontecera antes. A perspectiva a um passo de baralhar-se toda, como naquela noite, na sacada de S., as formas subitamente gritavam por distância. Sequei a testa com as costas da mão e me concentrei em reter as coisas em seus devidos lugares. A tela protetora, as banquetas, a pequena mesa branca, o cinzeiro equilibrado sobre o parapeito. Depois, o rapaz louro à minha frente, como que colhido no ato de desbotar, a tentativa de retê-lo em sua idade. E no entanto, havia sempre a possibilidade de que se tratasse de fenômeno inteiramente diverso.

Nessa altura, uma alusão a Descartes que não percebo muito bem, mas que desencadeia em minha mente um rosário de lembranças há muito recalcadas dos tempos da... 

*

Não. Desgraçadamente, não existe um ponto específico, único, onde o mundo deveria ter parado. Bastava, em suma, que me tivessem descrito a cena, a imagem, ela própria um maciço virtualmente inesgotável. Bastava que me tivessem contado a respeito desse homem absurdo, desse homem que se senta, em seu camisolão de dormir, diante de uma lareira; desse homem que, uma vez confortavelmente instalado, passa a destruir, uma a uma, todas as ideias que lhe haviam sido transmitidas até então a respeito de si próprio e do mundo que o rodeava. Este homem ante o qual o tempo não se detém, e que se torna cada vez mais indistinto com o tempo (o que nos impedirá, no futuro, de colocar a sua própria existência em causa? Seria irônico, enfim, se uma série de acidentes perfeitamente evitáveis fizesse com que nada lhe sobrevivesse afora sua dimensão mítica. Seria irônico, enfim, se por uma série de acidentes perfeitamente evitáveis, a credibilidade do mito fosse restituída, e nada sobrasse além disso às gerações futuras). 

Deveríamos ter partido dali. Da imagem de um homem sentado diante de uma lareira acesa, indagando de si próprio se existe. No entanto, relutamos. Buscamos refazer aquele percurso específico, o percurso singular daquele homem, em detrimento de um mundo de possibilidades.  

Agora me pergunto a troco de quê.

Era só a sensação de segurança, a perspectiva de trilhar com relativa facilidade um caminho já batido? Éramos tão ingênuos assim? Basta evocar a imobilidade de nossas feições enquanto a professora devolvia as folhas de papel almaço que preenchêramos de cima a baixo com nossos garranchos toscos. Tinha o rosto embicado, tenso, mas era infinitamente paciente com quem se mostrava empenhado. "Nós, os analíticos, não somos tão monstruosos assim", costumava dizer.    

*

Sinto que esta tentativa de esboçar o rosto e os modos do rapaz louro configura uma espécie de vitória sobre alguma coisa, alguma coisa talvez maligna. Como conseguir manter as pernas firmes diante da iminente desarticulação de um espaço, de uma cena. Devia ser muito jovem, muito vermelho ao sol, caminhando assim de ponta cabe;a, as mãos plantadas na areia, solas encardidas voltadas para o céu azul, a barra da jaqueta descendo-lhe até a nuca coberta por uma penugem imperceptível. Então, uma moça cujo nome agora me escapa nos disse... Esses meninos...

Esses moleques nascidos na década de 1990... não viram a morte do Ayrton Senna, não viram o Brasil ganhar a Copa de 1994... sobre o que falam entre si, meu Deus? Que tanto de assunto eles têm? Assenti com a cabeça, rindo. Continuamos a falar sobre a estranheza que nos causavam esses rapazes espalhados à frente do bar. Como sempre parecem, a princípio, inabordáveis. Como estátuas, inteiramente absortos no que se lhes diz, e ao mesmo tempo demonstrando uma consciência agudíssima dos próprios corpos, como se estivessem o tempo inteiro à mercê do efeito que buscam causar. Mesmo quando estão completamente de porre, não conseguem pôr de lado uns ares de intensa dignidade. 

Então, de repente, tudo muda mais uma vez. Justo quando vamos convencidos de sua perfeita imobilidade, justo quando vamos convencidos de que estamos rodeados de estátuas, bonecos de cera pelos quais não corre fluido algum, um deles é conduzido à roda, ou então, conduzem-nos a uma roda deles, algum conhecido em comum encarrega-se das apresentações. Um acidente perfeitamente evitável. Começam, então, com as gentilezas – está tudo bem? Posso segurar seu casaco? Eu prefiro as bichas boazinhas... –, tecem observações assombrosamente finas sobre arte e filosofia enquanto descansam as mãos em nossos ombros. De que descansam essas mãos? Os dedos parecem muito delicados. Mas têm também uma certa firmeza, certa qualidade de mármore, ou gesso.

Dirigem-nos a palavra com uma ternura que nos fere mortalmente, talvez por não a reconhecermos em ninguém da nossa idade. E no entanto, logo antes dessa morte algo nos toma de volta, as coisas restituídas a seus devidos lugares, ficamos para observar esta mutação da ternura em política, uma maneira de se colocar no mundo. Pensamos então, é inevitável, como nos colocamos no mundo? De pé. À entrada de um bar. Camisolões de dormir. O som de uma lareira crepitando. Alguém arroja lá dentro uma fotografia desbotada...

Meu Deus, como parecemos duros neste retrato. Iludidos pela dureza. Ingênuos.

*

"Mas eu não sou das artes do corpo...", ele dizia, eles... eles nos tocam, enquanto falam, esses rapazes, querem nos trazer para dentro de seus gestos, exigem a nossa participação em seus gestos. Assim, tornam a conversa uma coisa membrada, uma arte do corpo, e o projeto nos surpreende por sua aparente solidez. Porém, mais tarde, no curto trajeto de volta à velha casa, noto que minhas mãos estão vazias e não compreendo muito bem o que se passou. 

Pensei que algo restaria, embora não saiba precisar o quê. Sim, devo ter pensado que levaria algo de volta, mas desta vez não era ingenuidade. Mesquinhez. Em minhas mãos não havia nada além de um tremor leve e insistente... Em minhas mãos não encontrava senão as minhas mãos, em minhas mãos não havia senão um leve tremor nas minhas pernas, um borrão, um movimento de descida... É uma pequena ladeira, carreia-se, não preciso tomar impulso, nessa hora quase não passam carros. Ergo os olhos, desço. Continuo descendo, sem situar um perfil.  

Seria preciso erguer um pouco mais os olhos para ver o seu perfil. Ele certamente estaria de perfil, os cabelos (bem mais escuros que os do rapaz louro) escorrendo até a altura do queixo, o olho bom voltado na direção do Jardim Botânico.

“Podemos caminhar um pouco mais?”, ele perguntaria, eu perguntaria --, e por longo tempo não se diria mais nada.

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