domingo, 6 de abril de 2014

Os Solitários


Os solitários se erguem de brusco, agarram-se às traves, as pálpebras cerradas numa chama casta. Talvez, talvez delirem ao de leve quando puxam o cordão que deterá o coletivo na próxima parada. Um delírio coletivo, talvez, os solitários. Delirantes de pureza, saltam para uma bela manhã de outono, muito fresca, muito amena (onde estiveram escondidos o verão inteiro?). Uma canção, a começar por seus ouvidos, vai mudando-se num sopro irregular enquanto atravessa o crânio, jatos de ar intermitentes que passam, não sem alguma dificuldade, pelos lábios crestados. Porém, o som desaparece pela aspereza da língua, de todo o aparato bucal. Os solitários então buscam abrigo à sombra projetada pela marquise de uma agência bancária. Baixam as cabeças, passam manteiga de cacau. Lançam um olhar amoitado à gente que passa na rua, à gente que se enfileira frente aos caixas automáticos. São, a despeito de si próprios, um pouco obscenos. 

*

Umedece os lábios, a mão direita tapando-lhe o trabalho à boca. É como se tentasse mastigar, tendo apenas poucos dentes, uma generalização perigosa. Por ora os olhos ainda estão fechados. E depois? Abertos, à procura de algum recesso sujo, uma pastilha que falta, uma desarmonia no desenho do piso. Sua expressão é intensa e concentrada, um tudo nada combativa. Isto não é novo. Está lançando âncoras, busca fixar-se, esforça-se por vencer a leve, porém persistente desorientação que parece acompanhá-lo onde quer que vá. Precisa de ajuda. Não sabe se poderá aguentar-se muito mais tempo dessa maneira. Já se distrai o tempo todo de cuidados que deveriam, de há muito, habitá-lo. Com frequência assustadora, sente que lhe faltam motivos verdadeiramente convincentes para estar onde ora se encontra. Agora uma pequena crispação. 

Os dias.

Os dias repartem-se em pequenas crispações, acessos de tontura. Os dias agora estão amenos, frescos, bons para passear. Então, ele caminha, passa a mão sobre a testa, a palma brilha, arde. Veste azul, mas seria preciso olhar bem de perto. É um risco que ele não corre. 

*

Mas como terminaram dessa maneira, esses postulantes, esses entes sem recompensa? Não terão mesmo ninguém neste mundo? Nenhum parente, nenhum amigo, nenhum amante? Não. Todos se foram. Sem dúvida, seria preciso olhá-los (aos solitários) mais de perto – mas como, se todos se foram? Estão sempre fugindo para algum recesso sujo, pela falta de alguma pastilha, alguma desarmonia no desenho do piso. Sempre que dispomos de tempo para eles, escapam por alguma fresta, alguma irregularidade azul. E no entanto, quando estamos ocupados, quando estamos às voltas com nossos cuidados cotidianos, eles reaparecem, fazem visitas intermináveis, querem-nos por confessores. Falam, falarão sempre, sem parar, com a condição de que ninguém lhes dê ouvidos. Dessa maneira deixam-se ficar, trauteando sobre nossas cadeiras de balanço os seus crimes sem importância. Quando finalmente voltam para a falha de dentro da qual rastejaram, estamos completamente esgotados, tomados de uma comoção surda. 


*

Os solitários... onde estiveram escondidos o verão inteiro?

(Uma falha azul cortando toda a extensão de um deserto branco. Nenhum anseio conciliatório na paisagem).

Mas como terminaram desse jeito? Não terão mesmo ninguém? Nenhum parente, nenhum amigo, nenhum amante?

Não, todos se foram.

Nos bares, nas lanchonetes, nos cafés, imensa mão tapa-lhes o trabalho à boca. Eles sabem. Deixam a sombra projetada pela marquise, retomam o percurso por calçadas cada vez mais estreitas. Quase colhidos por um ônibus em alta velocidade. Talvez estejam um pouco febris, talvez seja apenas o calor do verão que não se dissipou de todo. Há sempre qualquer coisa que não se dissipa de todo. O percurso retomado entre ônibus, vagões de metrô, carros, motocicletas, tudo indo a uma velocidade terrível, rápido demais, como se não houvesse uma curva logo adiante, rápido demais para eles. Com que propósito observar tantos compromissos inúteis? A pergunta é uma afetação ingênua (se ao menos não soubéssemos os motivos). Apenas de raro em raro erguem a cabeça, talvez para as copas das árvores, placas de rua, mas que serventia teriam neste caso? Talvez para tabuletas. Passam sorrindo para cães impassíveis, não têm um sorriso bonito. Poderiam reconhecer-se uns aos outros pelos sorrisos, esses distintivos, a desfiguração neles, talvez. Mas fazem questão de passar longe dos seus. Os solitários se evitam, não vão se irmanar a outros solitários. Eles se medem nas esquinas, no saguão de um cinema, numa farmácia, na seção de hidratantes labiais: reconhecem-se, acham-se possíveis, e este pensamento lhes é aterrador, o que só à primeira vista nos deveria parecer inexplicável. Rapidamente retomam a caminhada, contrariados. Trocam de calçada, tentam não olhar para trás. Em tudo se portam como se tivessem escapado de um perigo mortal. Sim, a solidão dos outros, eles sabem, de raro em raro olham para o alto. Revocam a calidez de um corpo, a ideia de um corpo, não dentro deles, não uma extensão deles; uma separata. Fixam-se nos corpos fora deles, lançam âncoras, fixam-se nos ombros de um rapaz tomando açaí na mesa em frente. Certamente estará voltando da praia, estão todos voltando da praia, o rapaz na lanchonete, o homem no ônibus, sentado no banco ao lado, a obscena maranha de veias à sua têmpora esquerda. O ônibus atravessa um deserto branco. Baixam os olhos. Tapam a boca. 

Agora sim, sentem-se revigorados. Erguem-se de brusco, agarram-se às traves. Pensam na lentidão que há nessas pernas e braços jogados sobre a faixa de areia escaldante. Na total negação dessa calma, dessa pequena desordem, tão vital e acolhedora.

*

Os solitários se erguem de brusco, de manifesto, dispostos a pagar com a vida.

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