domingo, 6 de abril de 2014

Um Tipo Aflito


Ao homem que hoje nos propusemos resgatar falta a coragem de ser banal. No momento, o vemos num pequeno parque das redondezas, aflito porque hoje, justo hoje, o local não parece querer desdobrar-se em coisa alguma. As crianças – é cedo, ainda são poucas –, por algum capricho malicioso que ele não compreende, insistem em não se agrupar na imagem de Uma Criança, de onde seria fácil empreender o salto de volta a si. Sente-se desamparado diante das mães, das babás que trajam por uniformes imensos paredões brancos encharcados de luz. Acomodado a um banco de pedra, desatarraxa a tampa da garrafa térmica e serve-se de um pouco de café, mas o transe não se dissolve. Em vez de terminar o capítulo que iniciara na manhã anterior, revira o marcador de páginas na mão direita, preso ao primeiro cansaço do dia.
No marcador, nenhuma recordação digna de nota. Branco também, protocolar, tem o feitio de uma régua. Talvez seja mesmo uma régua. Mas não irá muito além disso (passaram-se já minutos decisivos). Enfim, o grave pressentimento de que nenhuma força conjuntará essas crianças hoje, de que permanecerão, cheias de arestas, pulando das gangorras aos balanços, dos balanços às gangorras, até que o calor e a claridade finalmente se tornem insuportáveis. Que estranha indisponibilidade no homem que a manhã esqueceu (pensou alguém, certamente alguém fora do parque, pois no parque não havia essas operações). A brisa, a sombra, o amargo do café, a anárquica brincadeira das crianças: nenhuma analogia, nenhuma aproximação possível, nenhum fio a reatar. Para onde, agora?

Agora o vemos dentro de sua casa, pouco antes de sair, no ato de encher a garrafa térmica. Do bule prateado – supostamente inquebrável – enganchado à mão esquerda, desce um fio regular, quente, negro (seus óculos se embaçam? Já pôs os óculos? Descreva-nos a armação). O homem está em sua mente e sua mente está em ordem. Pelo menos é assim que lhe parece. Não tem o hábito de inspecionar os cômodos antes de sair de casa, confia em que nada mudou desde a hora em que se recolheu. No azul caloso da madrugada, com apenas uma luz acesa na cozinha, não viu que sua biblioteca havia sido posta abaixo enquanto dormia, não viu os armários saqueados, não reparou nos talhos na cortina do chuveiro, passou como cego ao lado de uma ratazana morta sobre o piso de tábuas corridas da sala. No elevador, ajustou a viseira e trocou sorrisos com seu reflexo sob a lâmpada fluorescente, sentindo-se absolutamente preparado.
Os carros começam a contornar o parque (espécie de ilhota branca e verde no meio do asfalto) com cada vez mais frequência. O dia avançando, imbrecável, sobre sua incapacidade de associar as coisas. Há muito já desistira do livro, mas insiste em tentar extrair qualquer coisa do marcador de páginas. É uma impressão muito vaga. Algo que lera certa feita sobre os marcadores de página. Alguém, em algum momento, certamente já lhe transmitira algum dito espirituoso sobre os marcadores de página. Não, quanto a isso não havia dúvida, não podia haver. Sai à procura. Talvez numa festa, há muitos anos, mas não pode figurá-la agora. Um filme, talvez? Uma breve estada em alguma capital cinzenta, mais ao norte, bem mais ao norte, entrecortada de monumentos e canais congelados – uma capital entrecortada de leitores? Sugestão de crianças silenciosas folheando poetas russos no topo de um trepa-trepa. Fora uma criança silenciosa? Agora não pode figurá-la. A imagem de outro parque ameaça repontar, ele quase vê algumas tiras de neve imunda a rodear os balanços, uma galharia nua, recortada contra uma fileira de atarracados edifícios de tijolos vermelhos e marrons. Mas o elemento ausente, o homem dos balões cor de chumbo, não passará de um extremo a outro da cena, deixando em seu rastro um sutilíssimo aroma a postais obscenos. Muitas outras coisas são hoje em dia um palhaço triste.

Numa canção... ele lera... talvez... como era mesmo o nome daquele tipo belga com os olhos desvairados...? O livro, então, estava escrito num dos poucos idiomas do mundo de que não conhecia nem os rudimentos. Não, não era bem isso. Constrangimento em admiti-lo. Nunca lhe acontecera sentir-se estrangeiro em sua própria língua; descreveria o sentimento como “obsceno”, se ao menos alcançasse a palavra (não é como um balão, ou uma criança, ou um pássaro, nem mesmo como uma ratazana morta). 
Em nosso furgão branco, contornamos o parque pela undécima vez. É quando o vemos levantar-se, colocar a térmica e o livro de volta em sua bolsa e encaminhar-se para a rua, passando pelo quiosque de flores (desvia teatralmente o olhar dos vasinhos de violeta, com efeito, intoleráveis). Chega a um sinal e espera, ajusta a viseira e os óculos com inconfundível nervosismo. Tropeça nos tênis de corrida ao subir o meio-fio. Assim vamos seguindo até a padaria (tudo conforme os relatórios). Estacionamos, saltamos do veículo, entramos um pouco depois. No estado de nervos em que se encontra, jamais desconfiará de nada. Espalhamo-nos pelo recinto, tomamos nossas posições. Ele apoia os cotovelos na bancada, o cenho carregado. É o único real cliente a essa hora perdida entre o café da manhã e o almoço. Trazem-lhe um sanduíche. Ele o abre, fixa longamente seu conteúdo. Olha em volta. Seu rosto agora não conta bem com uma expressão. Varre-nos (alguns sinais inscritos numa tábua, sem nenhuma finalidade aparente). Depois de algum tempo, tira uma rodela de tomate de dentro do sanduíche e ergue-a bem alto, posicionando-a contra a luz.
   
“Agora, descreva-nos um parque”, ordena-lhe um de nossos homens, já dentro do furgão.

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