segunda-feira, 4 de agosto de 2014

Joaquim


I.

Aqui, Joaquim. Aqui!
Do outro lado!
Acenando.
Mas ele não esboça reação. Em que pese o fato de estarmos perfeitamente alinhados um diante do outro, trata-se de uma avenida imensa, terrivelmente movimentada, devo ter lido em algum lugar – “uma das vias mais convulsivas da América Latina”.
Sim, estou seguro disso, estamos um diante do outro, suficientemente alinhados para que me veja, ainda que a relances, nos intervalos entre os carros, ônibus, caminhões e demais indicativos de progresso humano.
Súbito, sou varado pela seguinte questão – terá Joaquim se tornado ele próprio um indicativo de progresso humano?
Neste caso, não deve fazer questão de me cumprimentar. Sigo acenando, no entanto, e cada vez mais enfático, cuidando apenas de não acertar as pessoas à minha volta, afinal, não me parece correto que sejam elas a pagar.
Em seguida, outra hipótese me acorre – a de que Joaquim esteja me enxergando perfeitamente, porém, não me reconheça. Afinal, nos últimos cinco ou seis anos, todos nós trocamos de óculos, perseguimos dentes mais brancos, produzimos cães. Fizemos, em suma, o possível para que não nos reconhecessem em multidões como esta.
No entanto, sigo acenando para Joaquim, do outro lado da avenida, enquanto o sinal não fecha.
Com isto, exijo que me reconheça; que o demonstre; que torne, com este gesto, um pouco mais verossímil a minha própria presença nesta cidade abominavelmente hostil (devo ter lido em algum lugar, “uma das mais convulsivas metrópoles...”)

II.

Joaquim dá por mim do outro lado da rua.
Acenando.
Parece satisfeito em me ver.
Não parecerá, no entanto, exageradamente satisfeito?
Há pouco, Joaquim se achava exemplarmente alheio aos arrancos e tropeços ao redor. Agora, contribui às convulsões da avenida com seus próprios arrancos e tropeços.
Estes constituem, a bem da verdade, apenas uma pequena parcela de um vasto repertório físico da aflição. Joaquim estica-se na ponta dos pés; morde o lábio inferior; avança o torso; recua; perde e recobra, em rápida sucessão, o domínio dos braços; seus olhos não se decidem nem pelo sinal nem pelos automóveis, os quais parece tentar apressar com pequenos movimentos espásticos das mãos, agora soltas.

III.

Decido que Joaquim me toma por outro – alguém que deseja, de fato, reencontrar. É curioso pensar em suas mãos há pouco inertes, metidas nos bolsos fronteiros da calça. Apalpava, talvez, algum objeto? Um pacote de pastilhas mentoladas? Um telefone, está coçando?
Um terceiro personagem, pequenino, preso ao fundo do bolso direito, seu minúsculo pescoço bem seguro entre o polegar e o indicador da mão de Joaquim?
Joaquim sente o horror deste personagem, ou melhor, sente-se de alguma maneira impulsionado pelo horror deste personagem? Estaria pensando, antes de me ver – “ainda não, ainda não, espere só até chegarmos no escritório…”?
Com ambas as mãos, abre um sorriso radiante.
Gesticula.
Não sem alguma dificuldade, compreendo afinal que ele me pede para permanecer onde estou, do meu lado da avenida. Os carros param, impacientam-se, ele já vem.
Pare de rosnar, pelo amor de Deus, ele já vem.
Mas como é difícil vencer pela imobilidade, triunfar do fluxo geral em meio a tantos que não medem nem nunca – desconfio – medirão esforços para ganhar o outro lado da avenida.
Todo o peso me abandona. Já não o reconheço.

“Que coincidência extraordinária”, entoamos os dois, praticamente em uníssono.


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