sexta-feira, 5 de setembro de 2014

Bom dia, rapazes


I.

Após a longa semana de trabalho, qualquer coisa nos autoriza enfim a falar de amor –, rosa amiga dos homens por abrigar em si tantas outras valências, os dedos, de par com certas ideias sublimes, vinhetas de peixe, fritas –, isto , que antes deslizava! A coisa se debate, debate-se acerca da coisa. Quando começa a chiar nas bordas da frigideira, seus fumos preenchendo a cozinha do botequim, está completo, estará incompleto? Quando falamos de amor, como agora, de boca aturdida, dedos malcheirosos, de viagem dos longos trabalhos da semana, longe onde ninguém nos possa tocar, e que nos toquem –, que nos alcancem e toquem –, para tanto estendem-se estes mesmos dedos para trás e para frente, esboço que relembra e pregusta o toque, afinal, ter um gesto, um gesto que seja, neste ar que pesa a peixe e frito. O mesmo gesto que não abole o tempo, que se ilude infantilmente tanto de aboli-lo quanto de atrair a atenção do garçom, um mesmo gesto fragorosamente inútil gemina sonho e lembrança – talvez uma volta larga, executa-se assim com a mão, o indicador em riste –, o resto do corpo em cortejo, humilhado pela nobreza do gesto. Ter um gesto, não uma prevenção, ter um gesto inútil e nobre que a tudo comporte em suas voltas – e isto “nos tempos de agora”. Os pés cruzam-se com os pés da mesa, as coxas enrijecem de súbito –, beleza e sordidez da digestão, passeio , enfim, conhece-se o jogo – nunca é o nosso, o nome que fazemos pairar neste ar viciado, que assinamos sobre as travessas e copos vazios – mas esta volta, propriamente esta série de voltas que fazem os braços, pescoços, barbas, bocas que nos comoveram até então. Liquidados os longos trabalhos da semana, quaisquer que sejam eles, sentaremos num botequim e falaremos de amor perfeitamente cônscios da indesculpabilidade do ato –, como quem já fez o pudor, a confidência – como quem já viveu com alguma profundidade os rigores da amargura e agora e um bocado jovialmente espatifa monóculos contra o balcão. Espatifar os monóculos contra o balcão sem perguntar-se se isto é uma imagem duradoura. Ter um gesto bravo, inútil, nobre, inútil, belo – chamá-lo de amor.

II.


Mais tarde, pouco antes de dormir, revemos – de passagem – estes dedos que sobrevoavam oleosos os destroços da mesa. A imagem filtrará pela página que ora lemos, pelo livro com que nos fomos deitar, zelosamente apagaremos o último cigarro. Ao livro se juntarão então os jorros de nada das mãos sobre a mesa, os fumos desprendidos de determinados gestos – bocas, as barbas, imberbe insistência das barbas em falar de amor, tudo isso cederá lugar enfim ao sono – bloco de perfeita contenção. O sono é ele próprio inútil e nobre, empurra o livro da cama. O livro – previsivelmente, uma compilação de histórias de amor – cai sobre a mesa de cabeceira, entornando o copo de leite. Mas não acordamos, e se acordamos, já é manhã de sábado – a primeira coisa que vemos, afastados do rosto os dedos da noite anterior, é o copo virado, o livro encharcado de leite sobre a mesa de cabeceira. Onde está escrito, a que se refere uma cama vazia? Pondo de lado os cabelos, os dedos da noite anterior, podemos então ver a realidade das coisas – e isso, “parte-nos o coração”? As mãos, cada vez mais antigas, “partem-nos o coração”? As imagens, mais antigas com cada amor, a cega insistência das mãos sobre imagens cada vez mais antigas – “partem-nos ainda o coração”? Certos de que tudo recomeçará – infalivelmente o amor, o trabalho, os livros, nenhuma dimensão heroica –, temos uma breve hesitação antes de buscar o pano e limpar a mesa de cabeceira. Faz sol e não há vento. Colocamos o livro para secar sobre o parapeito.

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