I.
Após
a longa semana de trabalho, qualquer coisa nos autoriza enfim a falar
de amor –, rosa amiga dos homens por abrigar em si tantas outras valências, os dedos, de par com certas ideias sublimes, vinhetas de
peixe, fritas –, isto –, que antes deslizava! A coisa se debate,
debate-se acerca da coisa. Quando começa a chiar nas bordas da
frigideira, seus fumos preenchendo a cozinha do botequim, está
completo, estará incompleto? Quando falamos de amor, como agora, de
boca aturdida, dedos malcheirosos, de viagem dos longos trabalhos da
semana, longe onde ninguém nos possa tocar, e que nos toquem –,
que nos alcancem e toquem –, para tanto estendem-se estes mesmos
dedos para trás e para frente, esboço que relembra e pregusta o
toque, afinal, ter um gesto, um gesto que seja,
neste ar que pesa a peixe e frito.
O mesmo gesto que não abole o
tempo, que se ilude
infantilmente tanto de aboli-lo quanto de atrair a atenção do
garçom, um mesmo gesto fragorosamente
inútil gemina sonho e lembrança – talvez uma volta larga, executa-se
assim com a mão, o indicador em riste –, o resto do corpo em
cortejo, humilhado pela nobreza do gesto. Ter
um gesto, não uma prevenção,
ter um gesto inútil
e nobre que a tudo comporte
em suas voltas – e
isto “nos
tempos de agora”. Os
pés cruzam-se com os pés da
mesa, as coxas enrijecem de
súbito –, beleza
e sordidez da digestão, passeio –,
enfim,
conhece-se o jogo – nunca é
o nosso, o nome que fazemos
pairar
neste
ar viciado,
que assinamos sobre as
travessas e copos vazios – mas esta volta, propriamente
esta série de voltas que
fazem os braços, pescoços, barbas,
bocas que nos comoveram até
então. Liquidados
os longos trabalhos da semana, quaisquer que
sejam eles, sentaremos
num botequim e falaremos de
amor perfeitamente cônscios
da indesculpabilidade do ato
–, como quem já fez o
pudor, a confidência – como
quem já viveu com
alguma profundidade os
rigores da amargura e agora e
um bocado jovialmente
espatifa monóculos contra o balcão. Espatifar
os monóculos contra o balcão sem perguntar-se se isto é uma imagem
duradoura. Ter um gesto
bravo, inútil, nobre, inútil, belo – chamá-lo de amor.
II.
Mais
tarde, pouco antes de dormir, revemos – de passagem – estes dedos
que sobrevoavam oleosos os
destroços da mesa.
A
imagem filtrará pela página que ora
lemos, pelo livro com que nos
fomos deitar,
zelosamente apagaremos o último
cigarro. Ao livro se juntarão então os jorros de nada das mãos sobre a mesa, os fumos desprendidos de
determinados gestos – bocas, as barbas, imberbe insistência das barbas em falar de amor,
tudo isso
cederá lugar enfim ao sono – bloco de perfeita contenção. O
sono é ele próprio inútil e nobre, empurra o livro da cama. O
livro – previsivelmente, uma compilação de histórias de amor –
cai sobre a mesa de cabeceira, entornando
o
copo de leite. Mas não acordamos, e
se
acordamos, já é manhã
de sábado – a primeira coisa que vemos, afastados do rosto os dedos da noite anterior, é
o copo virado, o
livro encharcado de leite
sobre a mesa de cabeceira. Onde está escrito, a que se refere uma cama vazia?
Pondo
de lado os cabelos,
os dedos da noite anterior,
podemos então ver a realidade das coisas – e
isso,
“parte-nos
o coração”? As mãos,
cada vez mais antigas, “partem-nos o coração”? As imagens, mais
antigas com cada amor, a cega insistência das mãos sobre imagens cada vez mais antigas –
“partem-nos ainda
o coração”? Certos de que
tudo recomeçará – infalivelmente o amor, o trabalho, os livros, nenhuma dimensão
heroica –, temos uma breve hesitação antes de buscar o pano e limpar a
mesa de cabeceira. Faz
sol e não
há vento. Colocamos o livro para
secar sobre o parapeito.
Nenhum comentário:
Postar um comentário