terça-feira, 8 de julho de 2014

Contrafeitiços


Algo que já amamos,
algo que de certeza já foi amado por nós,
começa a estreitar a casa pouco depois do anoitecer,
coloca seus ângulos em causa, pela janela da sala,
o quintal perde nomes, para revertê-lo
reviro a lata de biscoitos onde guardamos as peças de gamão,
tiro sons, operações simples
que me devolvam, ainda que escalpelado,
à língua materna, a esta hora em que tudo fraqueja, as janelas
não param de afundar, reviro
a lata de biscoitos onde estariam guardadas as peças de gamão
para perder os passos de certo homem alto
que uma tarde o convidou para o chá –,
à hora do chá, nesta hora
em que tudo parece fraquejar e a emissão de compassos ternários
torna-se questão de primeira importância,
confio a você, meu amor, esta hora,
esta hora de lata
e peças, a lata com as peças, o tabuleiro sobre a mesa, a mesa,
as cedências do terreno,
a você, ainda a meio do caminho, quem sabe palpando o molho de chaves
na metade da ladeira, pensa,
quem me atira essas coisas?, será sempre mais difícil subir?, talvez
talvez
se nos mudássemos, meu amor, os objetos
perdendo agouro, nenhum resquício de contrariedade, poderíamos então tocá-los,
de fato tocá-los, metê-los em caixas, poderíamos
fechá-los, lacrá-los, mandá-los embora, sem a menor consideração
por sua história íntima, você
não adoraria recomeçar? Não? Mas agora
abre a porta de casa e dá comigo
imóvel,
olhos cravados no tabuleiro, com gesto infinitamente amoroso
veste as costas da cadeira com o paletó, como suo frio censura
em silêncio meu otimismo.

Algo que já amamos –
algo que ainda amaremos –,
começa a estreitar a casa pouco depois do anoitecer.

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